sábado, 27 de agosto de 2011

O Acordo Ortográfico para os "dummies"

Há pouco tempo li na RTP1 a palavra "excecional" e engasguei-me umas duas vezes até conseguir lê-la como a sua antiga versão "excepcional". Não posso deixar de comentar este Acordo que parece fazer de nós parvos. Por isso aqui vai a minha solene opinião/desabafo:


Penso que é do conhecimento geral que existe, "por aí", um Acordo Ortográfico que foi entretanto adoptado em Portugal e que a maioria da população desconhece ou não utiliza. Para quem não sabe o que é o A. O. ou o que ele significa, deixo aqui uma pequena explicação da sua história, até porque ele deverá começar a ser implementado oficialmente a partir do próximo ano, a nível das estruturas governamentais e escolas. O primeiro A. O. entre o Brasil e Portugal foi aprovado em 1931. Visava suprimir diferenças, unificar e simplificar a língua portuguesa e, como é óbvio, falhou redondamente, não tendo sequer sido posto em prática. Mas desengane-se quem pense que os "reais" sonhadores deste projecto utópico desistiram dele. Em 1945 um novo Acordo foi implementado em Portugal mas não no Brasil, que continuou a reger-se pelo Formulário Ortográfico de 1943 (resultante da primeira Convenção Ortográfica entre os dois países). Temos portanto a partir de então os dois países a utilizar instrumentos reguladores diferentes, o que mais tarde dá origem a algumas divergências, que tentam ser sanadas em 1973. Em 1975 é elaborado um novo projecto de Acordo Ortográfico entre a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras, porém este não é aprovado oficialmente. Só a partir de 1986 são tidas em conta as opiniões de outros países de língua oficial portuguesa, pelo que o Acordo Ortográfico resultante da reunião no Rio de Janeiro em 1986 acaba por ser uma tentativa de englobar toda a comunidade dos países de língua oficial portuguesa numa discussão que se considerava de extrema importância mas que, uma vez mais, falha. Este acordo nunca chega a ser aprovado. Até agora os falhanços vão-se somando e o consenso parece longe mas em 1990 as duas academias anteriormente citadas elaboram as bases do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e de acordo com o artigo 3.º do mesmo, este entraria em vigor em toda a Lusofonia em 1994, mas apenas depois de ratificado por todos os estados participantes. O que, obviamente, não aconteceu. Em 1996, o A. O. encontrava-se apenas ratificado por Portugal, Brasil e Cabo Verde. Uma vez que era mais do que óbvio que nunca existiria consenso entre os países, decide-se fazer um último esforço para que todos os projectos dos utópicos que pensam que a Língua Portuguesa, em todas as suas variantes, deve e pode ser uniforme, não seja desperdiçado. Em 1998 assina-se um Protocolo Modificativo do A. O. da Língua Portuguesa. Desaparece o referido artigo 3.º, ou seja deixa de haver uma data para a sua implementação. Porém o apercebimento que o resto da clásula mantido (ou seja que continuava a ser necessária a ratificação de todos os membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP, para a sua implementação) fez com que em 2004, onde se aprova o Segundo Protocolo Modificativo ao A. O. da Língua Portuguesa, ficasse definido que bastava a ratificação de três membros para que este entrasse em vigor. Em 2006 as três ratificações são conseguidas: Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Entra em vigor o A. O. de 1990. Finalmente em 2008 Portugal aprova este Acordo e é combinada a sua implementação a partir de 2010. Em 2009 o A. O. entra em vigor no Brasil e às ratificações já consumadas juntam-se as de Timor-Leste e Guiné-Bissau (que no entanto não o implementaram).


Algumas alterações instituídas pelo Acordo Ortográfico:

1 - Inclusão das letras k, w e y no alfabeto da língua portuguesa, passando a ser constituído por 26 letras.

2 - Supressão de consoantes mudas ou não articuladas como: óptimo > ótimo; acto > ato; direcção > direção; acepção > aceção; excepcional > excecional; Egipto > Egito.

3 - Eliminação de alguns acentos gráficos como: jóia > joia; crêem > creem; pêra > pera; pólo > polo; pára > para.

4 - Supressão do hífen como: manda-chuva > mandachuva; páraquedas > paraquedas; anti-religioso > antirreligioso; contra-senso > contrassenso; auto-estrada > autoestrada; co-ocorrência > coocorrência; fim-de-semana > fim de semana; hei-de > hei de.

5 - Uso de inicial minúscula nos meses, estações do ano, pontos cardeais, colaterais e subcolaterais.

6 - Uso facultativo de minúscula ou maiúscula em: disciplinas escolares, cursos e domínios de saber, nomes de vias, lugares públicos, templos ou edifícios, formas de tratamento, nomes de livros ou obras.

Depois desta síntese, que mais pareceu um testamento, ficou para mim, patente a ideia de que o A. O. só foi possível ser implementado devido à extrema astúcia dos seus principais defensores que provavelmente através de outros acordos menos claros e mais sorrateiros, conseguiram os apoios necessários para as ratificações do documento. Existem na minha opinião duas questões prementes. Ambas complexas.

1.º Será que a CPLP precisa mesmo de um A. O.?

Bem, a questão em si é simples, mas gera controvérsia na medida em que não existe consenso no seio dos próprios especialistas. Eu darei apenas a minha opinião, salientando o facto que não sou especialista no assunto. Assim, para mim, a resposta é não. E um NÃO com maiúscula para que todos o entendam. Lamentavelmente para alguns, terei de apoiar a minha explicação na História. Portugal foi senhor de um grande império (pelo menos é isto que todos queremos acreditar, embora não tenha sido bem assim) colonial, mais tarde ultramarino. Mas isso foi sol de pouca dura ainda que tenhamos sido um dos últimos países a dar a idendepêndia às nossas colónias (1974), algumas das quais foram descolonizadas de forma vergonhosa. É-nos ensinado na escola que os portugueses se lançaram nos Descobrimentos e foram conquistando e descobrindo novos mundos. Isto é verídico se tivermos em conta que na altura "desconhecido" era toda a terra com a qual não se contactava a nível comercial. Depois de se estabelecerem contactos com as gentes da América do Sul, do Centro e do Norte (e aqui não interessa se já se conhecia ou não o continente nem quem lá chegou primeiro ou ao serviço de quem), o que interessa aqui realmente é o intercâmbio comercial e cultural que se estabeleceu. A língua foi desde logo um dos maiores entraves para os comerciantes portugueses, tanto no Novo Mundo (Américas) quanto na Ásia. Como comercializar com os novos povos se não conseguiam comunicar? Este problema foi ultrapassado com o tempo, de modos diferentes consoante os povos em questão, mas o que é certo é que se os homens (e algumas mulheres) portugueses conseguiram ultrapassar esta barreira de modos engenhosos, então porque é que actualmente se necessita de um Acordo Ortográfico?

Tudo bem, um acordo ortográfico não implica alteração da língua e não tem como objectivo permitir a diferentes povos que consigam comunicar entre si, até porque se pressupõe terem uma língua em comum. O objectivo é simplicar e uniformizar a sua grafia. Mas muito sinceramente, em aulas de Paleografia, tive a oportunidade de estudar textos de língua portuguesa com a grafia utilizada em séculos muito variados como o século XII, XIII, XIV e XV e apesar das dificuldades iniciais, em que pensei seriamente estar perante textos noutras línguas, consegui perceber o que li não obstante o vocabulário antigo, e qualquer pessoa que saiba português dirá o mesmo. Naquela altura era normal as várias cidades e os vários scriptores reais e eclesiásticos não seguirem regras estritas de grafia e ainda assim todos se percebiam. Não me parece que seja necessário uniformizar a nossa forma de escrever só porque se encontram algumas diferenças na grafia de certas palavras, originadas, claro por uma heterogeneidade de povos e culturas diferentes que compuseram o chamado "império" português.

A verdade é esta: existem milhares de falantes da língua portuguesa no mundo. É claro que o facto de o Português ser, salvo erro, ou a 4.ª ou a 5.ª língua mais falada a nível mundial, está relacionado com o desenvolvimento da população brasileira (o que significa também que o português do Brasil é o mais veiculado a nível internacional). Todas as restantes variações do português são utilizadas por uma minoria de falantes. Existem situações análogas com o Reino Unidos e os países de língua inglesa e nem por isso encontramos a "mãe" Inglaterra, a impôr a sua grafia "aos seus filhos". Tudo bem que a questão aqui é um pouco diferente, mas porque razão temos de uniformizar a Língua Portuguesa? Desde séculos anteriores que todos nos entendemos. É certo que nos PALOP o português ensinado apresenta diferenças prementes não só com o português do país "colonizador", mas também com a língua que depois acaba por ser passada para o papel a nível popular. Mas temos de entender e respeitar as culturas em questão. Tratam-se de países eles próprios muito heterógenos. Já para não falar em casos como Timor-Leste e Macau (que entretanto voltou a ser administrado pela China, mas onde até então ainda haviam resquícios de uma língua portuguesa arcaica) e não são meia dúzia de Acordos que vão conseguir colmatar estas diferenças. Penso que seria lícito uniformizar a língua portuguesa se se tratasse da língua universal (o que não é equivalente à língua mais falada no mundo, que é o mandarim), porém este estatuto só pode (com algumas reservas) ser reivindicado pela língua inglesa. Na realidade existe uma língua oficial utilizada na CPLP, seja que variante for. Essa língua é o português e continuará a ser quer exista A. O. ou não. Não podemos sequer tentar estabelecer uma destas variantes como melhor ou como mais indicada para ser adoptada. E aqui temos de ter a noção que a língua assume-se como um elemento cultural de extrema importância para um povo e que deve ser protegida a todo o custo pois ela garante a sua identidade perante outras culturas diferentes.

A indiferença que o povo português tem votado a este assunto é alarmante. Não que pense que é obrigatório sentirmos orgulho de sermos portugueses, quando é mais do que óbvio que a nossa classe dirigente não honra os valores que deveria honrar em prol do povo que administra. Mas quando o assunto diz questão a algo que interfere no quotidiano da população, todos deveriam dar o seu parecer e aqui coloca-se a questão seguinte:

2.º Porque é que Portugal ratificou o A. O.?

Gostaria de poder dizer que Portugal ratificou o Acordo por pura estupidez ou mesmo ignorância, mas isso não é possível, porque apesar de tudo existem na comunidade portuguesa algumas pessoas que são sabedoras de diversas áreas e não se pode dizer que a informação não chega à população (talvez não chegue a localidades isoladas nos arquipélagos ou mesmo em zonas recôndidas do interior português, mas actualmente a utilização da rádio, televisão e internet são práticas comuns em quase todo o país e garantem que todos tenham acesso à informação de um modo mais ou menos igualitário). A classe dirigente, na altura liderada por José Sócrates do Partido Socialista, sabia o que estava a fazer quando disse o "sim" à ratificação deste A. O. e sabia, ou pelo menos, devia saber, das suas consequências. O problema, na minha opinião, é tê-lo feito sem sequer ter "pensado" em pedir o parecer de todos aqueles que seriam afectados por isso, ou seja a população portuguesa.

A população portuguesa foi chamada para votar em referendo três vezes desde 1998 (Referendo sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez e Referendo sobre a Regionalização ambos em 1998 e novamente Referendo sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez em 2007). Segundo o que é estipulado em lei, "o referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo". Parece-me claro que sendo a língua uma forma de comportamento padronizada e repetitiva que faz parte integrante da forma de vida de cada sociedade, este assunto devesse ter sido submetido a um referendo em todos os países membros da CPLP. Talvez seja esta a razão pela qual tão pouca gente se manifesta acerca da implementação deste A. O. Simplesmente foi excluída e foi-lhe negado o direito de o fazer por meio democrático (ainda bem que os tempos do Salazarismo já lá vão, não é? *citação irónica*). Quem percebe minimamente do assunto espera que uma minoria de sábios linguístas e protectores da estrutura actual da Língua Portuguesa faça algo para impedir tal A. O. de vigorar (o que, em princípio é uma batalha perdida), quem não entende do assunto espera que o A. O. entre em vigor para por fim começar a utilizá-lo. Actualmente já existem vários meios de comunicação a fazê-lo. A RTP e certos jornais, revistas e editoras já o aplicam. Para o ano vão seguir-se as escolas e os meios académicos assim como todas as dependências governamentais (ministérios, autarquias, tribunais...).

Então e a Cultura Portuguesa, onde fica no meio de tudo isto?

Não fica. Não há espaço num mundo governado pelos interesses económicos e num país à beira do colapso (se bem que este colapso já se arrasta há anos) para a protecção de valores culturais. Assim a única resposta que aceito para a pergunta sobre as razões que levaram Portugal a ratificar o A. O. é a seguinte: porque os nossos líderes políticos são uns vendidos. Lamento a expressão barata que uso, mas é assim mesmo. É a realidade nua e crua. E assim, o senhor Sócrates e o seu governo decidiram pelos portugueses. Decidiram que a partir de 2010 fosse implementado um período de co-existência de sistemas (sendo aceite tanto o A. O. como o sistema de escrita antigo, que continuou e continua a prevalecer), e que a partir de 2011 as nossas crianças comecem a ser instruídas somente tendo em conta o A. O.

Embora continuem a existir resistentes (e eu incluo-me nesse conjunto), embora grande parte da população adulta não vá utilizar o A. O. quando escrever (quer por discordar dele ou por mera habituação do sistema antigo), a verdade é que daqui a dez ou quinze anos, todos estaremos conformados com o novo acordo. Todos nós vamos ler textos, livros, revistas e legendas de filmes e séries consoante o A. O. e não vamos poder fazer nada. A tendência será depois, vista na prática, porque a população irá, com certeza escrever da mesma forma de lê a palavra nos meios de informação, pelo que o A. O. triunfará.

Sim, é verdade que o núcleo da Língua Portuguesa não se modificará. Também é verdade que simplificar a estrutura da língua é benéfico pois irá aproximar-se a maneira de escrever à de falar. Mas qual a necessidade de o fazer (exceptuando os tais favores económicos que Portugal conseguiu do Brasil por este ser uma economia em franca expansão)?

Necessidade não há e nunca houve. Nunca ninguém se queixou por ter de escrever um p em baptismo ou um c em acto ou mesmo escrever Verão com maiúscula. Não se trata de decidir qual a forma correcta de escrever Egipto ou Egito. Ambos estão correctos mas usam-se em países diferentes. E era assim que devia continuar a ser. Mas há benefícios, não culturais, obviamente, mas económicos no que diz respeito ao assunto. As editoras lucrarão com a elaboração de manuais (novos dicionários, novas gramáticas, etc.), as empresas de software também terão oportunidade de desenvolver conversores e programas que apliquem e corrijam os textos antigos. Óptimas oportunidades de negócio para quem conseguir explorar este tema, para os utilizadores da Língua Portuguesa, trata-se única e exclusivamente da perda de certos elementos da sua cultura.

Com estas alterações anunciadas acima, algumas das quais bastante controversas, o debate promete continuar mas...será que ainda vale a pena? Para mim vale sempre a pena lutar por algo que nos pertence por direito, e a língua é uma dessas coisas. Com tudo isto acho que adivinho o que se seguirá: com a adopção deste A. O. a nível oficial, o Estado irá ter despesas extra (que provavelmente não foram incluídas no Orçamento aprovado) pelo que o melhor é estarmos preparados para a criação de mais alguns impostos ou aumento daqueles que já existem, é que alguém terá de pagar e como é óbvio, calha sempre ao "Zé Povinho!"